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quinta-feira, 9 de março de 2006

Não é bem assim... 1

O curso de Direito é fascinante. Você percebe que a sociedade poderia realmente funcionar de forma harmônica se as leis criadas, que não são poucas, tivessem um uso bem mais amplo do que preencher folhas e folhas de papel e servir de objeto de estudo aos acadêmicos e curiosos. Falta a execução de tais leis, segundo os principios básicos da igualdade.

Muito interessante também é aprender os caminhos que o nosso Direito teve que percorrer para estar neste formato atual. Na verdade, muito do que hoje usamos vem de "ruínas" de códigos e normas antigas, inclusive de povos que nem mais existem. Pode-se perceber facilmente como o desenvolvimento das sociedades influencia o Direito, e este, obviamente, deve se alterar conforme este desenvolvimento. Pode parecer estranho, mas nas entranhas de nossas leis vamos encontrar disposições de cerca de 2000 anos a.C.

A História do Direito trata disso, de como foi o processo de desenvolvimento do Direito entre os povos. Não temos nada muito novo, boa parte do que aprendemos hoje recebemos por herança de nossos "colonizadores-exploradores", a 500 e poucos anos atrás. As questões de igualdade entre raças, credos, sexo, classe social vêm sendo tratadas a tempos e conseguimos muitas melhorias, mas ainda falta muito a ser feito. O nosso Direito é essencialmente machista, está no seu DNA.

Agora, esta ciência fascinante e, por definição, imparcial e justa, pode ser ofuscada por quem obviamente deveria estar ensinando isso, não só em palavras, mas em ações também. A pessoa que deveria ensinar igualdade (conforme a Constituição Brasileira), imparcialidade e ausência de preconceitos é controversa em suas palavras e ações. Falo de uma pessoa com grande conhecimento técnico, vivência na área, que estuda muito. Escreve também.

Aliás, penso que podemos ter um problema no excesso de conhecimento. Começa-se a se viver um sentimento de autosuficiência, obscurescência, insensibilidade, como se o conhecimento por si só fosse algo que tornasse uma pessoa superior a outra. Desconsidera-se objeções, colocando-as como "ridículas", ultrapassadas, infantis, ou simplesmente ignorando-as. O conhecimento deve ser usado para ajudar a discernir o certo do errado, o bom do ruim, facilitar o processo de escolha, e não ser um "tapa-ouvidos", um "tapa-olhos".

Pois bem, uma hora fala-se em "...todos os indivíduos são iguais perante a lei, independente de raça, sexo, credo religioso, idealismo político...". Na outra, a pérola "... se fosse a preta citada na reportagem...". Pensei comigo: "Bom, talvez ele esteja sendo irônico". Estávamos estudando as diferentes aplicações da lei para pessoas de classes sociais e raça diferentes, onde politicos e abastados tinham privilégios em crimes graves, enquanto a "plebe" amargava penas duras para pequenos delitos. Deixei de lado.

A seguir estudamos sobre como o Direito veio parar no Brasil, pelos espanhóis e portugueses. O mestre comentou sobre o triplo crime que ocorreu nas terras brasileiras, até então de posse indígena:
- o saque das nossas riquezas naturais e minerais;
- a substituição forçada na lei baseada em costumes, próprias dos índios, pelo modelo europeu;
- a imposição da religião (catolicismo) feita pelos jesuítas.

Em seguida o mestre fez um discurso efusivo, ressaltando principalmente o fato da imposição da religião, já que ele é especialista em direito indígena. Concordei com tudo que ele disse a respeito da destruição da cultura, dos diversos povos dizimados. Mas uma observação me deixou pensativo: "... o cristianismo é apenas uma religião, quem disse que só Jesus salva? e o pessoal que viveu antes dele, foram todos pro inferno?" Ok, cada um é livre para manifestar sua crença ou descrença, mas o fato nas entrelinhas é a ênfase que ele deu a essa frase. Ficou implicito que quem acreditava nisso era ingênuo, ou limitado, ou algo assim. Vendo desta forma, entendi, além de que faltava-lhe um conhecimento específico para falar nesse assunto, como um preconceito disfarçado, e induzindo a turma a pensar como ele, mesmo ele afirmando que não estava defendendo ou atacando nenhuma religião.

Mais tarde, vimos a legislação mosaica, onde o professor fez uma manifestação claramente preconceituosa. O Direito encara os cinco primeiros livros da Bíblia como livros de leis. Mais uma vez, o mestre fez uma declaração de que ele não estava pregando nada, tomando a Bíblia como exclusivamente um documento histórico. Porém, ao se referir a ela, por várias vezes falou "... não sei se vocês acreditam ou não nesse livrinho, se levam a sério, se vocês têm essa Biblia em casa vocês podem ler essas leis...". Obviamente, falado em tom de ironia, como se dissesse "vocês acreditam nessa baboseira de Bíblia, né?"

Não tiro o direito dele falar assim, mas o problema é induzir os outros a pensar desta forma, e o preconceito velado existente nas declarações. Tive um mal estar. Mas não é tudo. Como falei antes, eventualmente um excesso de conhecimento pode obscurecer um pouco o bom senso das pessoas. O operador jurídico pode, frequentemente, se tornar esnobe, autosuficiente, parcial, elitista. No início da aula tivemos uma sessão "descontração", onde o professor relatou para a turma diversos casos de pessoas simples que vieram buscar sua ajuda. Como era de se esperar de pessoas mais simples, os casos eram bem "curiosos", e a forma de contar também é reflexo da pouca educação. Muita ênfase foi dada nas expressões erradas deles, ou as situações do caso em si. Tratados várias vezes como "povão", no sentido pejorativo mesmo da palavra, como se dissesse "esses pobretões desprovidos de inteligência", o professor ria e fazia a turma rir dos acontecimentos. Não nego que ri de alguns casos, mas a insistência do professor em usar termos pejorativos fez com que tivesse um mal estar. Olhei para o lado e vi que não estava sozinho, minha colega, médica formada e atuante, aparentemente também não estava muito a vontade com aquilo tudo.

Mas, concluindo, o Direito é indispensável pra formação e organização da sociedade, que inclusive muito conteudo deveria ser dado aos nossos alunos do ensino fundamental e médio. Só que fica muito complicado incutir isto na mente dos acadêmicos quando o responsável por nos ensinar a formar uma sociedade melhor no futuro tem atitudes que não condizem com o que fala. As ações falam mais que as palavras.

Bem, estou só desabafando, talvez esteja exagerando. Talvez não.
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